Imagine : um dia, você acorda e não tem mais Internet em lugar nenhum. Os meios de comunicação estão fora do ar, nenhum serviço pode funcionar, o sistema de produção está parado. Você não pode se comunicar com ninguém além do seu telefone, você não sabe mais o que acontece no mundo. Esse cenário distópico, digno de filmes apocalípticos não é apenas ficção e afeta anualmente milhões de pessoas no mundo.
Desde 2015, 151 desligamentos de Internet foram registrados em mais de 35 países. Um dos mais longos da historia foi no Camarões em 2017, quando a região que fala inglês no país ficou desconectada por mais de três meses consecutivos após as autoridades terem literalmente cortado o cabo submarino de conexão à banda larga internacional. Na Índia, 54 desligamentos foram relatados em menos de dois anos.
Esses desligamentos acontecem geralmente por do Poder Executivo ou do Poder Judiciário para, supostamente garantir a segurança pública, evitar propagação de conteúdos ilegais ou, ainda, permitir a realização de provas de vestibular, ou são simplesmente qualificados como problemas ou sabotagens. Entretanto, vários ativistas em todo mundo têm mostrado é que esses cortes acontecem preferencialmente em contextos de instabilidades políticas, com o propósito de conter protestos; ou em períodos eleitorais, a fim de limitar as comunicações e controlar a população. E durante os desligamentos, casos de violação a direitos humanos geralmente se multiplicam.
Nem sempre os desligamentos são tão espetaculares como no Camarões ou na Índia. Cortes curtos, focando determinada região ou serviço continuam a ter impactos danosos nas redes de comunicações, mas causam menos indignação da opinião pública, podendo até ser assimilados como problemas técnicos passageiros.
A campanha mundial #KeepItOn, coordenada por 143 organizações em 60 países define o desligamento de internet como:
uma interrupção intencional da internet, de aplicativos moveis ou das comunicações eletrônicas, tornando-os inacessíveis ou efetivamente inutilizáveis para uma população específica ou dentro de uma localidade, muitas vezes para exercer um controle do fluxo de informações.
No Brasil, os casos de interrupção da Internet foram essencialmente bloqueios de aplicativos por ordem judicial. O fenómeno se intensificou nos últimos anos e em especial em 2015 e 2016, quatro decisões judiciais ordenando o bloqueio do aplicativo WhatsApp foram deferidas para pressionar a multinacional Facebook (dona do aplicativo) a entregar dados criptografados de usuários para investigações criminais contra usuários do mensageiro instantâneo. Das quatro sentenças, três foram executadas, totalizando um apagão de cerca de 40 horas do aplicativo.
Interpretando de forma equivocada o Marco Civil da Internet, juízes de primeira instância impuseram medidas desproporcionais, ferindo um principio básico do próprio Marco Civil da Internet, sacrificando as comunicações de cerca de cem milhões de usuários. O artigo 12° do Marco Civil unicamente prevê a possibilidade de “suspensão temporária das atividades” na camada de conteúdos de uma aplicação de Internet que falhe em proteger os dados dos usuários. E o artigo 9º do Marco Civil ressalta ser proibido o bloqueio do tráfego de dados na camada de infraestrutura, salvo casos emergências e quando se tratar de requisito técnico indispensável à prestação adequada dos serviços.
O bloqueio do aplicativo necessita uma intervenção na camada de infraestrutura da Internet, realizada pelas operadoras de telecomunicação. pesar de essa atribuição ser vedada no artigo 9° da Lei nº 12.965/2014, elas cumpriram a ordem judicial sem denunciar a ilegalidade. Por causa da estrutura de rede no continente, o bloqueio ainda teve impactos fora do Brasil, com casos relatados na Argentina, Chile e Uruguai.
Bloqueios de aplicativos ou desligamentos de Internet têm graves consequências sobre a economia. Envolvem não só os provedores cujos serviços são bloqueados, mas também as operadoras e principalmente as empresas e pessoas físicas que utilizam os serviços. Uma pesquisa da Brookings Institution estimou que entre 2015 e 2016 os desligamentos da Internet no mundo causaram um dano total na economia de 2,4 bilhões de dólares por ano. Só no Brasil o custo teria sido de 116 milhões de dólares, o 5ª maior em todo mundo apesar de terem sidos poucos casos.
O Brasil não é o Camarões. Considerando o nível razoável de conectividade do Brasil, a dependência de sua economia nacional à Internet, o tipo de bloqueios ocorridos até agora e a relativa vitalidade da opinião pública, comparada com regimes autoritários, o risco de um apagão longo e generalizado de sua rede não é tão alto, apesar das necessárias ressalvas a serem feitas perante a atual instabilidade da conjuntura. Por outro lado, o ano de 2018 apresenta um quadro de pelo menos três características favoráveis a bloqueios, de acordo com os casos que vêm sendo registrados mundialmente, o que nos obriga a permanecerem atentos: (1) um processo eleitoral onde as redes sociais terão um papel crucial comparado com os pleitos anteriores, (2) uma conjuntura política e social fortemente instável com fenômenos de radicalização, violência de Estado e acirramento dos confrontos na opinião pública e (3) poderes públicos que têm tratado casos de crimes cibernéticos, violação à honra ou ao direito à comunicação de maneira desproporcionalmente repressiva.
Exemplos de iniciativas repressivas visando bloqueios ou retiradas arbitrarias de conteúdos não faltam nos últimos anos. Vale mencionar o chamado PL espião (PL 215/2015) que prevê aumento de penas para crimes contra honra praticados nas redes sociais ou ainda o relatório da CPI dos crimes cibernéticos, apresentado em maio de 2016, que recomendou alterar o Marco Civil da Internet para legislar a favor de bloqueios de aplicativos ou site que praticam crimes online, violação a direitos autorais ou pirataria. Já no âmbito da reforma política em vista do processo eleitoral de 2018, o Congresso tentou aprovar em outubro do ano passado uma medida de censura de conteúdos nas redes sociais divulgando “informações falsas ou que desfavorecem a imagem de partidos, coligações e candidatos”. Felizmente, a mobilização social massiva obrigou o Presidente a recuar e vetar a emenda.
Mas a repressão em torno das chamadas “Fake News” (termo em inglês) nas eleições não terminou por ai . Desde o final de 2017 um grupo de trabalho foi instaurado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com participação das Forças Armadas, Polícia Federal, e Ministério Público. Essa iniciativa, junto com vários outros projetos de lei em tramitação no Congresso, tendem ainda a aumentar o controle do discurso e judicializar a produção de informação, o que pode ser tornar uma grave ameaça ao direito à informação dos eleitores brasileiros.
Uma pesquisa da universidade norte-americana Dartmouth mostrou que o fenómeno das “fake news”, que inflamou as preocupações dos governantes depois da vitória de Donald Trump à Casa Branca em 2016, teve um impacto limitado na formação da opinião dos eleitores. Sem duvida, o fenómeno precisa ser mais bem analisado, mas há de se perguntar quais são as intenções dos poderes públicos perante essa caça às fake news em um contexto midiático onde a desinformação é praticada com impunidade pelos próprios veículos ditos confiáveis.
O fenômeno dos bloqueios e desligamentos da Internet tem sido sempre mais denunciado graças à mobilização internacional da opinião pública que contribuiu chamar a atenção para casos que até então ocorriam na impunidade. No continente americano, a prática é condenada pela Convenção Americana Sobre Direitos Humanos desde 1969 que, no seu 13° artigo, item 3, estipula que:
Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
Mais recentemente, em 2016, o Conselho de Direitos Humanos da ONU, divulgou uma resolução sobre a proteção dos direitos humanos na Internet afirmando que:
Condena inequivocamente medidas que impeçam intencionalmente ou interrompem o acesso ou a divulgação de informações on-line por violação ao direito internacional dos direitos humanos e exorta todos os Estados a abster-se e a cessar tais medidas.
Uma coalizão de 30 Estados Nacionais, da qual o Brasil não faz parte, também denunciou os bloqueios produzindo uma série de recomendações para os governos no início de 2017. No âmbito do setor privado, multinacionais como Facebook, Google ou Microsoft e gigantes das telecomunicações como Telefônica, AT&T e Orange produziram uma declaração conjunta sobre bloqueios de redes e serviços e a responsabilidade das empresas de telecomunicações na busca de maior transparência e sensibilização sobre os danos sociais e económicos de tais medidas.
No Brasil, não é possível afirmar que bloqueios de aplicativos ou desligamentos temporários de Internet irão acontecer, mas vários fatores estão reunidos para favorecer esse tipo de medida. Cada desligamento suspeito precisa ser considerado. Não podemos deixar que, em nenhum momento, sejam violados os direitos à informação e à comunicação da população brasileira. A rede de mobilização internacional está de olho, pronta para ser acionada.
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